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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Saudade


É-me impossível transformar em palavras a dor que é perder um amigo. Faz hoje quatro anos que a leucemia levou a G. e, no entanto, o meu peito continua a apertar cada vez que o meu pensamento foge de volta para o que aconteceu. Dizem que o tempo cura tudo. Talvez, mas este é um sofrimento do qual eu não me quero curar. Quero recordar-me dela para sempre.
Foram três anos de luta, sempre com um sorriso nos lábios, e desde o início até ao fim esse sorriso enganou-me, fez-me acreditar.
Lembro-me tão nitidamente dos primeiros sintomas, do primeiro alerta. Ela parou a meio de uma das nossas aulas de música, chorava com a dor. Eu resmungava que ela era sempre a mesma fiteira. Ela sorria. Convenceu-me que não era fita. Nessa mesma noite ligou-me, estava no hospital e iam-lhe fazer um exame à medula. Não quis perceber, garanti-lhe que ia ficar tudo bem.

“Rita, tenho leucemia. Explicaram-me que é tipo um cancro do sangue, mas não faz mal porque o meu irmão é compatível e vamos fazer um transplante.”. Sorriu.

Dois dias sem saber dela. Resolvi ligar. Do outro lado uma voz mais madura, a mãe.

“Ritinha, a G. está em coma. Os médicos dizem que foi uma pneumonia e que está muito mal.”
Não sabia se sabia rezar ou sequer se alguém me ouvia, mas nos 15 dias seguintes foi tudo o que fiz. Rezei, na esperança que alguém me ouvisse.

“Um milagre”, disseram. Tinha acordado.
Durante meses vi a minha amiga ficar mais fraca através de um vidro.

“Estou um bocadinho melhor, já podes vir cá a casa.”
Quero ir, mas não quero ir. Passei horas naquele sofá. Durante três anos vimos filmes, ouvimos música, conversamos, jogamos jogos de mesa, festejamos um dos aniversários...e eu continuo sem saber se estive mesmo lá. Assim que pisava o chão daquela sala, assim que a via daquela maneira, mesmo sem sair do sítio, fugia. Escapava da realidade. Ela sorria.

“Este transplante não resultou. Tenho de fazer outro.”

“Este transplante também não deu certo. Vamos tentar outra vez.”

Num dia próximo do Natal lá fui eu a mais uma visita/tarde de distracção. Deu-me uns brincos feitos pela sua própria mão. “Tenho muito tempo livre”, disse, logo seguido por uma gargalhada. Aproveitando que eu ainda me ria, e enquanto punha os meus brincos novos:

“Rita, estou cansada. Chegou a hora de parar de lutar.” Sorriu.

Assim como estava, foi tal e qual como fiquei. Não chorei, não falei, não esperneei, não reagi, nada. Se me concentrasse muito podia ser que aquilo que ela tinha acabado de dizer não fosse verdade. Preferi ignorar. Se eu ignorasse talvez não se tornasse real.
Os dois meses seguintes foram de angústia contida e dissimulada. Era difícil contactá-la, saber notícias. Finalmente, a voz madura outra vez:

“Ritinha, eu sei que tens ligado mas a G. está muito cansada, não consegue atender, mas quando conseguir liga-te, está bem?”

Não me sossegou. Uns dias mais tarde recebo uma mensagem no telemóvel:
“Desculpa por não te ter atendido. Espero que saibas que não é por mal e que gosto muito de ti. Aconteça o que acontecer, nunca te esqueças que serás sempre muito importante para mim e que eu nunca te vou esquecer.”

Respondi:
“Eu também nunca te vou esquecer. Mas não sejas parva, vai ficar tudo bem”. Foi a última vez que falamos. Foi por escrito e eu disse-lhe a coisa mais ridícula do mundo! “Não sejas parva”. Como me posso perdoar?

Dois dias depois, num domingo pela hora de almoço, toca o telefone de casa. Atendeu a minha mãe, não falou. Do reflexo do espelho vi a cara dela, e eu que nunca quis perceber, percebi. O chão fugiu-me dos pés, as pernas cederam, e pela primeira vez em três anos, reagi.

Há quem diga que há momentos na vida que nos muda, e a partir daquele momento posso afirmar que nunca mais fui a mesma. Tinha 19 anos e perdi uma amiga. A morte dela mudou tudo, absolutamente tudo, na minha vida. Mudou a minha personalidade, a minha maneira de encarar tudo que me rodeia, a minha maneira de ser e de estar. Deixei de acreditar que era imortal, passei a acreditar menos na “vida é bela”, deixei de fazer amigos com facilidade, nunca mais consegui encarar alguns que já tinha. Tornei-me mais amarga, menos crente, mais medrosa, mais cautelosa, mais fria. E definitivamente muito mais triste.
Todos os dias penso como seria se ela estivesse aqui. Teria sido enfermeira como sonhava? Teria já casado? Filhos? Seriamos ainda amigas? Ou já nos teríamos separado à força de uma trivialidade qualquer? Seja como for estaria, com certeza, a sorrir.

Dois dias depois fiz anos, e fazer anos nunca mais teve o mesmo sabor. Um ano depois voltei a fazer anos...e a mãe dela deu-me uns brincos.

E eu sorri.

RITA
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Miúda, quando morrer a primeira coisa que faço é dar-te uma coça por me teres deixado tão cedo.
Fazes-me falta, porra...

ALICE
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E quando achava que já não havia mais lágrimas para chorar...

Continuo sem saber como te dizer adeus, digo-te antes, até um dia.

ANA

1 comentário:

Anónimo disse...

O maior sentimento que pods dar a uma migo nao é apenas o da amizade...mas sim o da saudade...pois significa que nunca o esquecerás...todas as alegrias mas também todas as dores que passaste (em silencio ou nao )ao lado deles. Tu es uma amiga fantastica e uma pessoas incrivel...eu sigo-o porque falo por experiencia propria..conheço-t..e sei k ela (a G.) também sabe quao maravilhosa tu es...!Acredita que ela é e sera sempre o teu anjo da guarda....
As despedidas nunca sao faceis...mas deixam sempre marcas...
Um bjinho enorme p uma amiga linda e xeia de alegria que nunca vou deixar k a percas
(o sol por vezes pode nao tar sempre a vista, mas esta sempre presente...axim xpero k saibas k eu sou axim ctg)
Bjinhos
M.C.